domingo, 13 de março de 2011



VALE O QUANTO SABE


É uma pena que eu não valho nada. Foram anos tentando e chega uma hora que de repente você acorda, ou leva na cara, que tudo que fez não valeu nada. Você então começa a se lembrar de tudo, de tudo mesmo que já fez, em nome do futuro. Cada momento que passa uma lembrança lhe vem: ter nascido, ser escolhido na loteria milionária dos espermatozoides; cair em uma família que você nunca viu na vida de feto, e olha que ela já vem toda pronta, de avós a primos, às vezes até cachorro já temos; ai vem a educação familiar, a que serve de base, de escoro, de norte para sua vida toda, e..., e..., bem, é um tal de menino não faça isso, não mexa naquilo; foi você que quebrou essa cadeira? Não coma porcaria. Coma isso, e isso e isso; cadê os chinelos; já escovou os dentes, penteou os cabelos? (para que se vão atrapalhar ao dormir?), não me responda, aliás, não responda ninguém; respeite os mais velhos; silêncio que estou assistindo televisão (e não se movam no sofá enquanto isso); pare de chorar, choramingar ou soluçar; não fale palavrão; não tenha opinião, além da minha; pare de perguntar; não grite; brincar com fogo e água não pode, faca também; vista isso que ta frio, tire esse gorro que ta muito quente; ô menino se eu te pego... e assim por diante. Depois chega o momento tão esperado de libertação dos pais: a alfabetização escolar. Pronto agora ele aprende a viver em sociedade, a dar valor no companheirismo, a ter compromisso... menino pare de rabiscar a parede; não pode conversar com o amiguinho na hora da aula; não coma cola, ela vai grudar seu estomago, ou entupir suas tripas; chiclete no cabelo não vale, não vale não. Não pode! É, pode pintar esse desenho da cor que você escolher, não roxo não pode, vermelho também, rosa, nem pensar; não chuta a canela do Pedro; não chora, só porque o Pedro te enfiou o dedo nos olhos, você já é grandinho; não corra no recreio; não jogue pedra nos outros, é isso mesmo, mesmo que ele tenha jogado primeiro, não pode! Coma toda sua papa, e pare de comer cola novamente. Para tarefa de casa vocês têm que fazer isso, aquilo e aquilo outro. Foi mais ou menos assim, e o pior é que quando estamos pensando que vai acabar, piora! Chegou a hora e a vez do segundo grau, acho que era motivo para comemoração, afinal fui elevado de posto, promovido, agora posso fazer o que quiser. Colar na prova não pode, da suspensão e dependendo expulsão; matar aula também é muito grave e causa os mesmos efeitos; bomba no recreio é crime; namorar no colégio não pode, já falei que não pode. Não, não! Você aqui de novo, vai tomar suspensão, você já tinha sido avisado que não podia. Pode falar quem quebrou a pia; você sabe os nomes dos que mataram aula, fale, estou esperando; quem pegou a bola, você sabe que é um patrimônio público. De novo, de que série é essa menina? Ô menino, já não dissemos que não pode namorar no corredor! Não, em nenhuma parte dentro do colégio. Você vai ser penalizado porque ajudou seu amigo a colar, você encobertou o que eles fizeram, então é tão culpado quanto; a fila da merenda é só para quem precisa; tomem conta dos livros que eles serão de outros alunos ano que vem; não responda; não tenha opinião. E coisas do tipo que não me lembro mais. Pronto agora acabou, terminei o tal do segundo grau, estou livre, vou ver o mundo, conhecer pessoas e espalhar meus genes. Calma, você tem que fazer faculdade, hoje todo mundo faz, e se não fizer você não vai ser nada na vida. Todo mundo tem que ter uma profissão. Qual vai ser a sua? Não, essa acho que não se perece com você. Essa não tem mercado, essa outra não dá dinheiro. Pronto, já escolheram então vamos lá, agora vai ser tudo diferente. Ô rapaz, para de conversar em aula; matar aula pode, só que te pego nas provas, e promessa é dívida; claro, pode colar, é só eu não ver, afinal o burro é você. Pode, pode comer o que quiser, só pense antes o que tal comida pode lhe causar, obesidade, artrite, celulite, conjuntivite, mastite, gonorreia, seborreia, gravidez e cólera; não delate os companheiros, só se for chamado na frente de um conselho de professores, aí pode, se não quem paga o pato é você; não explore as pessoas, a não ser em trabalhos de grupo, líder que é líder sabe aproveitar as capacidades de seus, digamos assim, liderados; trate os professores de igual para igual, só não queira que a recíproca seja verdadeira, eles são superiores mesmo, talvez se torne assim um dia, quem sabe. Pegou o livro, devolva, se não devolver: multa e dependendo, expulsão permanente das estantes empoeiradas; aprenda informática, mas não vire hacker; tire as melhores notas, ou morra tentando; a competição faz parte do mundo lá fora, acostume-se, ninguém vai passar a mão na sua cabeça, ninguém mais te protegerá; ah, o mais importante: finja que tem opinião, e opine sempre que puder, mesmo que não saiba do que se trata o assunto. E pensar que depois de todo esse ensinamento paro nesse exato momento e me pego em uma crise existencial, não sei porque isso sempre acontece comigo, também eu não valho nada mesmo. E você?

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